sexta-feira, 8 de março de 2024

Casa de mãe

Chegando em casa depois de um dia cheio, coloquei uma massa no fogo e pedi para um dos meninos pela os tomates para o molho. Nesse momento revi uma cena corriqueira em cozinha de mãe quando minha irmã mais velha pelava tomates para o molho da massa. A cena se repetiu. O cheiro do manjericão colhido no quintal fresco e saudável para servir o jantar me remeteu a memórias inesquecíveis que surgem em pequenas horinhas de descuido e meu coração se enche de alegrias saborosas.
A cozinha sempre foi um laboratório de sabores e aprendizagens, é quase uma alquimia, os hábitos alimentares que me identificam e constroem minha identidade vieram de muitas mulheres que vieram antes de mim. As receitas da avó que passaram para a mãe e chegaram até mim, mas não somente as comidas ancestrais que fazem parte de minha vivência.
As mulheres que viveram antes de mim foram cruciais para a vida que tenho na atualidade e a minha vivência será uma contribuição para as que vierem depois de mim. Os direitos que temos hoje como trabalhar fora, ter sua própria renda, decidir quando, como e com quem ter filhos e se quer ter, assim como o direito de voto e tantos outros que usufruo hoje só foram possíveis pelas lutas delas.
As minhas ancestrais agradeço pelas conquistas e lutas travadas as mulheres que virão depois de mim, tenho a responsabilidade de manter a luta para garantia de direitos que ainda não foram conquistados. E da alquimia da cozinha os sabores ancestrais que me foram transmitidos tenho a obrigação e o dever de manter intactos para as futuras gerações.
O afeto que foi herdado, as heranças culturais que são presentes pra minha existência devem ser preservadas para as virão depois de nós. A ancestralidade se faz presente em meu cotidiano com as histórias contadas de geração após geração, da identidade cultural, das danças, das receitas que enchem a cozinha de sabores e cheiros, das memórias afetivas das festividades familiares, assim com os traços biológicos que me foram dados por herança genética.
E todas as mulheres que viveram antes de mim, habitam meu ser e se mostram presentes em todas as esferas de atuação da vida diária. O meu lugar no mundo, as minhas relações afetivas estão repletas de conhecimento, identidade e representatividade de todas as mulheres que vieram antes.
E nas voltas que o mundo dá, educar meninos para o respeito e afeto com as mulheres também é uma responsabilidade nossa de mãe. Em casa de mãe tem afeto, tem respeito e comida boa, casa de mãe é ninho, casa de mãe é colo, está sempre aberta pra quando precisar com comida e risada, com cheiros e uma generosa pitada de ancestralidade. Por que não há lugar melhor no mundo que casa de mãe.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Para meu irmão mais velho

Esses dias tenho pensando em você que certa vez chegou de uma de suas viagens pela Amazônia trazendo consigo um estranho inseto em uma garrafa com álcool, dizia ser a serpente voadora. Contava que era tão perigoso que seu veneno era capaz de matar até árvores centenárias. Tinha a história de um peixe cor de rosa que se chamava boto, e sua lenda de se transformar em moço bonito para namorar as meninas novas. Tinha história da Vitória régia e as fotografias que ele trazia das flores enormes nos espelhos das águas dos rios. Eu ficava ali, olhando, escutando as histórias "folclorizadas" que ele trazia juntamente com as "provas", não poderia ser mentira, jamais.
De suas andanças, trouxe muita coisa, conhecimento, histórias, sua caixa de memórias deveria ser muito complexa e repleta de informações. Eu gostava disso. Numa dessas andanças ele presenteou nossa mãe com uma tigela que disse ele ter sido feito a partir de uma pedaço de madeira, essa madeira ia sendo cavada até formar a tigela e depois os indígenas decoravam com recortes na peça, uma arte conhecida como artesanato da ilha de Marajó.
Esses dias, alguém me perguntou de onde veio a tigela de madeira cheirosa que tenho sobre a mesa, respondi que foi herança de mãe, presente de irmão. E viajei nas lembranças daquela sala cheia de gente ouvindo as histórias que muitos não acreditavam, mas gostavam de ouvir. Depois fui procurar ver se existe mesmo essa serpente que voa e me deparei com ela, igual a que habita as minhas memórias. No norte do Brasil aonde ele vive se conta esses mitos mesmo, mas não há registros de mortes por causa dele.
Foto: Jequitiranabóia
Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia/cobra-que-voa-conheca-a-jequitiranaboia

E nas voltas que o mundo dá, a jeuitiranabóia, nem é tão feia, nem é venenosa, mas ele também não mentiu contou pra gente o que contaram pra ele. A minha tigela de Marajó é de verdade uma tigela cavada no pedaço de madeira, até hoje ainda é cheirosa. É um artesanato lindo, e todas as histórias que ele contava tinha um fundo real, uma verdade que as vezes aumentada, mas sempre uma verdade. E agradeço tanto por tido a oportunidade de ter compartilhado o mesmo tempo e lugar com esse aventureiro. E por falar em tempo, tá chegando o seu aniversário mas já não dividimos o mesmo planeta, estamos em outras estradas. Foi bom estar com você Selmo.


sábado, 27 de janeiro de 2024

Corpos precarizados

Manoel de Barros certa vez escreveu: "uso as palavras para compor meus silêncios". Essa pequena frase costuma causar tempestades de pensamentos. Esses dias vi que uma novela antiga iria ao ar com nova roupagem, e lembrei de quando adolescente eu vi a primeira versão. Se passaram trinta anos e ela agora vem com a mesma história, e eu me deparo com diálogos profundos e os mais variados tipos de precarização dos corpos humanos, especialmente das mulheres.
Naqueles tempos da primeira novela, a  gente achava charmoso um rapaz tomar um beijo sem autorização da moça, como Zé fez com Santinha. O relato de Morena contando como chegou, e porquê chegou na casa de perdição da Jacutinga e a explicação da dona do estabelecimento para empreender na casa de "acolhimento" e prostituição humanizada. Os maus tratos do pai para proteger a filha de ser abusada pelo patrão. E a vida masculina, fazendo o que bem lhes convém com os corpos desde seu nascimento. Ditando regras, colonizando o pensamento feminino como forma de castração psicológica. A ponto de criar a competição entre mulheres para que elas não possam se unirem, pois se o fizer se tornam uma ameaça pra a masculinidade frágil.
Essas práticas corporais são massacradas por ações rotineiras e exageradas com o controle excessivo, e silêncio sobre a sexualidade. E na busca pela libertação corpórea é no corpo que se imprimi as marcas sociais. Também na TV aberta  por esses dias, um homem com seu abdome globuloso, corpo tatuado, cabelo pintado, unhas com carência de cuidados. Se encontrou no lugar privilegiado de fala de criticar  o corpo esteticamente dentro dos padrões considerados belo de uma mulher, branca, cisgênero e heterossexual em redes sociais.
Fico me perguntando como no século XXI conseguimos chegar a um atraso tão grande? Se passaram três décadas da novela passada para os dias atuais, e as cenas e diálogos perfeitos do autor que tem um trabalho brilhante, ainda são tão atuais? Por que os corpos femininos ainda são tão precarizados?
E nas voltas que o mundo dá, hoje tanto quanto ou mais que ontem, precisamos falar de amor. Precisamos e esperança do verbo esperançar de Paulo Freire. Uma pedagogia emancipatória para a não precarização de nenhum corpo, a valorização das pessoas com dignidade humana e a não violência de qualquer tipo para que possamos Renascer.