segunda-feira, 26 de junho de 2023

Das cartas que nunca te dei/darei

Esse ano fez quarenta e cinco anos que você partiu para outras paisagens. Não tive o prazer de conviver com você, mas as memórias herdades são tantas. Esses dias revi um poema seu de décadas passadas, uma de suas netas me manda a foto do acordeom que ela mandou restaurar, outra pessoa me conta das aventuras vividas em andanças pelas estradas com você. É bonito, parece que você não foi e nem vai. Ontem você meio me visitar e foi um sonho lindo e resolvi te escrever (pra nunca esquecer). A vida é feita pra viver agora, não pra deixar para depois, só se vive um dia de cada vez. Ouvi tanto isso.
Saber que você aprendeu a ler e escrever sozinho me aquece o coração, mas também era poeta e tocava acordeom, ah, isso já demais. Não consigo lembrar seu cheiro, o som da sua voz, nem mesmo como era seus passos, imagino eles enérgicos, avexado, acredito que tinha uma cabeça cheia de ideias, além das preocupações, mas acredito que tirava aquele tempinho pra ler, escrever e olhar as estrelas.
Sei que em noites de verão quando o céu limpo mostrava as estrelas e o cinturão de Órion para os meus irmãos e as vezes os contemplava sozinho, viajando no seu mundo particular. Acho que era nessas horinhas de descuido que a felicidade brilhava em seus olhos. Ficar sozinho as vezes é tão bom. Nisso eu acho que te entendo.


Poema de pai



Instrumento dele

Pai, mãe e eu.
O casal que mais aprendi a admirar, mesmo conhecendo só uma metade, mas essa metade que ficou foi meu tudo por muitos anos, e parte de vocês ficaram em mim, acredite, é a minha melhor parte, pois de todo o amor que eu tenho metade vieram de vocês, cada um do seu jeito. Essa semana ganhei essa fotografia, eu não sabia com quem estava e foi um lindo presente, agora tenho uma herança física afetiva, meu tesouro particular.
E nas voltas que o mundo dá, minhas memórias foram herdadas de outras pessoas que com você conviveram, e como eu tenho inveja desses momentos que não tive contigo! Meu baú de lembranças agora tá mais rico, e farei dele bom uso. Gosto de ver as caras dos seus netos quando conto suas aventuras e história de vida pra eles. Obrigada por fazer parte da minha vida, por fazer parte de mim e dos meus, meu samurai negro.

 

domingo, 11 de junho de 2023

Casa-lata-lar

Desde menina as latas sempre me chamaram a atenção, não só por guardar sabores e segredos, ou os dois, mas também por ter um charme diferenciado. Em casa de vó tinha a lata de biscoito de canela, em casa de mãe tinha a lata que antes era de biscoito importado e virou lata de agulhas e linhas de costura. E todas as latas ganhavam uma finalidade nova depois que era esvaziada. Em casa de tia tinha uma caixa de biscoito, não era lata, mas tinha formato de casa, muito parecida com aquelas casa da Alemanha com madeira aparente entre as paredes e telhado em V investido. Como eu tinha vontade abrir e brincar com elas, mas era só pra ver, afinal era de papelão, se manuseasse muito, já era.
Esses dias passando na feirinha orgânica encontrei uma lata-casa contendo biscoitos, na Pascoa comprei um ovo de lata recheado de biscoitos, eles são caseiros, têm flores enfeitando, as embalagens são de papel daquele que a gente enrolava pão na padaria, e ainda tem um carimbo. Tudo tão "Vintage". O cuidado com o uso dos ingredientes e a preparação das delicadas bolachas são uma perfeição. Optei por bolachas amanteigadas, com flores de primavera e óleo essencial de tangerina e de lavanda. Um festejo de sabores.


Lata de biscoito

Lata com telhado aberto

Biscoitos floridos

E nas voltas que o mundo dá, ainda vejo a arte de cozinhar como uma magia sagrada e o ato de se alimentar saboreando as delicias e delicadezas é um êxtase. Não comprei a lata de biscoitos por querer voltar no tempo. Nunca tenho essa intensão, mas descobrir os sabores de biscoitinhos amanteigados e com flores e óleos essenciais, são como pequenos segredos, memórias novas que se juntam as antigas em uma nova embalagem, uma nova casa-lata-lar pra guardar.



quinta-feira, 8 de junho de 2023

Eu nunca estou só

Desde sempre eu ouvia minha avó e mãe dizerem: "o conhecimento é a única riqueza que ninguém pode tomar de você. Por isso estude, você nunca estará sozinha". Confesso que hoje tenho minha dúvidas quanto ao roubo. Ano passado, ainda no mestrado eu e Geysa resolvemos colocar um plano em ação. Escrevi o projeto sobre a Mandala como horta escolar (que já existe), mas com adaptações para o uso de maneira didática, ela agora é usada para educação ambiental e disciplinas da área profissionalizante em agroecologia, e na formação de professores do campo, além de alunos da educação infantil até o ensino superior. E tem ainda um banco de dados para o planejamento das ações didáticas.
Feito o projeto, montei minha equipe para colocar em prática. Engenheiros agrônomos, químicos, biólogos e professora de linguagem. Sem financiamento, conseguimos uma escola que adotou a ideia e ofereceu o material físico e o espaço para a implantação da Mandala. O projeto foi aprovado em edital da UESB e a gente colocou em prática na escola que fica logo ali na Barra do Choça, cidade vizinha, em um assentamento do MST. Com o projeto pronto e entregue, me deparo com um vídeo do prefeito exaltando o projeto e dando todos os créditos pela ideia e implantação a uma ONG da Alemanha. Depois de uma denúncia o foi tirado do ar, mas é claro que medidas cabíveis serão tomadas junto a Universidade.
Implantar um projeto dessa grandiosidade não é  tão simples, exige um levantamento topográfico, traçado dos círculos, análise de solo e água, adoção de culturas adequadas a produção dos sujeitos do campo, controle integrado de pragas, produção de mudas, centro de compostagem, galinheiro e canteiros de plantas medicinais, irrigação e drenagem, mas também a valorização dos conhecimentos ancestrais e valorização dos saberes do campo associado ao saberes  científicos de modo a "copiar a natureza" com uma produção economicamente viável, socialmente justa e ecologicamente correta.
É importante lembrar que a colonização ainda não acabou, os europeus implantaram sua colonização em todos os setores da educação e  da vida da sociedade brasileira, é preciso descolonizar o pensamento, deixar de oferecer tudo de mão aberta para os estrangeiros, já chega de colonialidade. 
E nas voltas que o mundo dá, eu realmente não estou só, o conhecimento e a sua construção são direitos de todos, inclusive, é um princípio da agroecologia, mas se apossar de um conhecimento e trabalho de outras pessoas e oferecer os créditos a outros não é justo e não deverá passar impune.


domingo, 4 de junho de 2023

Memórias afetivas

Certa feita Sêneca escreveu: "Eu espero que quando a morte te encontrar, ela te encontre vivo". Essa frase é muito forte, pois cada dia é único e fica gravado nas memórias afetivas. Minha avó Joana era uma mulher muito sábia. Ela costumava dizer: "Construa memórias, um dia será tudo o que você terá". O mês de junho é o mais rico de todos. O cheiro da comida na cozinha de alimentos específicos da colheita são especiais, a fogueira e os fogos de artifícios, e, sobretudo as músicas juninas são sempre um temporal de emoções boas.
Lembranças que ficaram na memória como os forrós na casa de tio Paizinho, as simpatias do Santo Antônio (que meus irmãos sabotavam), as fogueiras acessas as 18:00 horas em ponto, o frio da época e as histórias dos nossos ancestrais contadas na beira da fogueira como aquelas das botijas nas paredes, são tempos que não voltam mais. São dias únicos que se tornaram quadros memoráveis e tempos passados.
Esses dias voltando pra casa do trabalho passei no Shopping que me deparei com um pequeno "arraiá." Com capelinha de Santo Antônio, com fogueira estilizada, barracas de comidinhas, e até uma pracinha aonde os músicos tocavam forró. Viajei no tempo sem sair do lugar.








E lá estava eu na minha cidade, no tempo que a quermesse era feita na rua principal com passeios entre a igreja e a praça. No tempo que a gente saia no meio da noite pra colocar a faca na bananeira, de colocar o santo de cabeça pra baixo, de contar quantas batidas a aliança dava no copo com água e de juntar os primos e primas que vinham de longe pra comemorar os festejos juntos.
E nas voltas que o mundo dá, viver cada um dia como únicos que são é uma construção individual e coletiva de memórias pra se contar na beira da fogueira, o ciclo se repetindo com as novas gerações.  Junho seu lindo e cheiroso, se achegue e fique a vontade, traga novas lembranças para esse baú chamado vida. E quando a morte nos encontrar, estejamos tão cheios de vida que ela se recuse a nos levar.