segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Para meu irmão mais velho

Esses dias tenho pensando em você que certa vez chegou de uma de suas viagens pela Amazônia trazendo consigo um estranho inseto em uma garrafa com álcool, dizia ser a serpente voadora. Contava que era tão perigoso que seu veneno era capaz de matar até árvores centenárias. Tinha a história de um peixe cor de rosa que se chamava boto, e sua lenda de se transformar em moço bonito para namorar as meninas novas. Tinha história da Vitória régia e as fotografias que ele trazia das flores enormes nos espelhos das águas dos rios. Eu ficava ali, olhando, escutando as histórias "folclorizadas" que ele trazia juntamente com as "provas", não poderia ser mentira, jamais.
De suas andanças, trouxe muita coisa, conhecimento, histórias, sua caixa de memórias deveria ser muito complexa e repleta de informações. Eu gostava disso. Numa dessas andanças ele presenteou nossa mãe com uma tigela que disse ele ter sido feito a partir de uma pedaço de madeira, essa madeira ia sendo cavada até formar a tigela e depois os indígenas decoravam com recortes na peça, uma arte conhecida como artesanato da ilha de Marajó.
Esses dias, alguém me perguntou de onde veio a tigela de madeira cheirosa que tenho sobre a mesa, respondi que foi herança de mãe, presente de irmão. E viajei nas lembranças daquela sala cheia de gente ouvindo as histórias que muitos não acreditavam, mas gostavam de ouvir. Depois fui procurar ver se existe mesmo essa serpente que voa e me deparei com ela, igual a que habita as minhas memórias. No norte do Brasil aonde ele vive se conta esses mitos mesmo, mas não há registros de mortes por causa dele.
Foto: Jequitiranabóia
Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia/cobra-que-voa-conheca-a-jequitiranaboia

E nas voltas que o mundo dá, a jeuitiranabóia, nem é tão feia, nem é venenosa, mas ele também não mentiu contou pra gente o que contaram pra ele. A minha tigela de Marajó é de verdade uma tigela cavada no pedaço de madeira, até hoje ainda é cheirosa. É um artesanato lindo, e todas as histórias que ele contava tinha um fundo real, uma verdade que as vezes aumentada, mas sempre uma verdade. E agradeço tanto por tido a oportunidade de ter compartilhado o mesmo tempo e lugar com esse aventureiro. E por falar em tempo, tá chegando o seu aniversário mas já não dividimos o mesmo planeta, estamos em outras estradas. Foi bom estar com você Selmo.


sábado, 27 de janeiro de 2024

Corpos precarizados

Manoel de Barros certa vez escreveu: "uso as palavras para compor meus silêncios". Essa pequena frase costuma causar tempestades de pensamentos. Esses dias vi que uma novela antiga iria ao ar com nova roupagem, e lembrei de quando adolescente eu vi a primeira versão. Se passaram trinta anos e ela agora vem com a mesma história, e eu me deparo com diálogos profundos e os mais variados tipos de precarização dos corpos humanos, especialmente das mulheres.
Naqueles tempos da primeira novela, a  gente achava charmoso um rapaz tomar um beijo sem autorização da moça, como Zé fez com Santinha. O relato de Morena contando como chegou, e porquê chegou na casa de perdição da Jacutinga e a explicação da dona do estabelecimento para empreender na casa de "acolhimento" e prostituição humanizada. Os maus tratos do pai para proteger a filha de ser abusada pelo patrão. E a vida masculina, fazendo o que bem lhes convém com os corpos desde seu nascimento. Ditando regras, colonizando o pensamento feminino como forma de castração psicológica. A ponto de criar a competição entre mulheres para que elas não possam se unirem, pois se o fizer se tornam uma ameaça pra a masculinidade frágil.
Essas práticas corporais são massacradas por ações rotineiras e exageradas com o controle excessivo, e silêncio sobre a sexualidade. E na busca pela libertação corpórea é no corpo que se imprimi as marcas sociais. Também na TV aberta  por esses dias, um homem com seu abdome globuloso, corpo tatuado, cabelo pintado, unhas com carência de cuidados. Se encontrou no lugar privilegiado de fala de criticar  o corpo esteticamente dentro dos padrões considerados belo de uma mulher, branca, cisgênero e heterossexual em redes sociais.
Fico me perguntando como no século XXI conseguimos chegar a um atraso tão grande? Se passaram três décadas da novela passada para os dias atuais, e as cenas e diálogos perfeitos do autor que tem um trabalho brilhante, ainda são tão atuais? Por que os corpos femininos ainda são tão precarizados?
E nas voltas que o mundo dá, hoje tanto quanto ou mais que ontem, precisamos falar de amor. Precisamos e esperança do verbo esperançar de Paulo Freire. Uma pedagogia emancipatória para a não precarização de nenhum corpo, a valorização das pessoas com dignidade humana e a não violência de qualquer tipo para que possamos Renascer.