segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Afeto e fome

Adélia Prado um dia escreveu: "Não quero faca, nem queijo, quero a fome". A palavra afeto vem do latim "Afettare" que quer dizer "ir atrás". Então afeto e fome são semelhantes, pois os dois são a vontade de ir em busca de algo. Não adianta ter a faca e o queijo sem o desejo de comer, sem a fome para saciar. Não adianta ter pra onde ir sem ter vontade de chegar lá. Hoje o dia amanheceu frio, mesmo sendo primavera, chovendo fino e a vontade que tinha era de ficar mais um pouco ali na cama entre os lençóis quentes. Depois de um café forte e quente, resolvi cuidar do meu jardim.
Lembrei dos dias sem sol em que você cuidava do jardim, dizia que a terra estava mais fácil de manejar, pois estava úmida, e cheirava o ar como se tivesse um perfume diferente, esperando que o sol ao chegar trouxesse as flores primaveris. Nesses dias tinha bolo quente no final da tarde. Já fazem anos que você partiu, mas esse cheiro de perfume no ar úmido, e a terra que a gente mexe com mais facilidade depois da chuva, são receitas sua, não se aprende em escola de agronomia.
Hoje resolvi fazer um bolo de chocolate pra ser servido com calda quente de laranja com canela e saboreada juntos no café da tarde. E assim poder celebrar a sua memória. E nas voltas que o mundo dá, a minha fome é de construir memórias afetivas nas pessoas que amo, com sabores e cheiros para serem lembrados com alegrias e nunca com outro sentimento que não seja bom, e fazer o sorriso escorrer pelo canto da boca quando sentir o cheiro ou sabor de uma lembrança afetuosa. Saudade de você mãe.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

A vassoura

A casa dela era simples, a porta de entrada tinha duas partes, a superior só fechava no fim do dia, a parte inferior servia de suporte para abrigar os braços cansados quando parava pra ver o rua ou conversar com uma amiga próxima. O chão parecia um uma goiabada de tão vermelho, salpicada de círculos de luz que vinha das frestas do telhado de argila vermelha. A cozinha era o melhor lugar da casa, sempre com o fogo de lenha cedinho acesso de onde emergia o aroma do café torrado com rapadura e pilado no pilão de madeira. A lata de biscoite sempre tinha uma bolacha de canela pra servir aos netos que a visitavam.
A cadeira de madeira e palhinha era o trono, lá ela tercia lentamente seu crochê branco como quem terce detalhes de vida, memórias guardadas e orações que professava. O seu quintal era de terra, tinha plantas e temperos que perfumavam o ambiente. No final da tarde, a vassoura feita de ramos de alecrim, manjericão e mastruz amarrados com agave no cabo de madeira era o seu material para limpar o quintal, esse previamente salpicado de gotas de água para minimizar a poeira.
Enquanto ela limpava seu quintal e entoava cantos de sua infância, com quem acariciava a terra terra com sua vassoura , o cheiro de terra molhada se misturava com o das ervas que pertenciam a vassoura em um ritual que dava gosto de ver. Enquanto saboreava uma bolacha de canela, eu ouvia atentamente seus ensinamentos. Ela dizia: "Varrer é uma libertação". "É varrendo que se joga fora o lixo da vida e se agradece pelo que tem."
E nas voltas que o mundo dá, varrendo a casa ou o terreiro de terra  a gente bota as ideias em dia, se tiver triste, varra a tristeza, não para debaixo do tapete da alma, mas para fora. Se tiver com baixa autoestima varra pra fora com um  batom vermelho e cabelo hidratado, varra as auguras da vida com uma vassoura imaginária de um passeio no mato ou no mar. Tenha sempre uma vassoura, seja de ervas, de pelos sintéticos, seja imaginária, mas tenha uma vassoura e varra. Não é atoa que a vassoura é o símbolo das mulheres livres.