quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Miçanga

Todo final de ano era um caminho de roça eu ir na loja de "sarrabuio" comprar linhas, botões e zipes para minha mãe costurar as encomendas de final de ano. Ali eu ficava por um bom tempo escolhendo botões de tamanhos e cores variadas para cada peça que ela costurava, era um monte de botões misturados em um recipiente, um trabalho demorado que as veze me aborrecia. Esses dias fui ao armarinho daqui, uma loja grande que não combina com o nome no diminuitivo, escolhi linhas e botões e encontrei uma variedade de coisas e cores entre elas uma infinidade de miçangas, pensei em fazer um colar e fui escolher. Impossível não me lembrar nos novembros em Esperança com idas intermináveis para atender as demandas da mãe.
Entre aquelas pecinhas coloridas fiquei imaginando a combinação e entretida o tempo passou como quando eu escolhia os botões antigamente. Pensei que estava meio doida por me encantar com aquelas coisinhas, mas lembrei logo que o Neruda também teve um devaneio como esse quando cortava uma cebola, ele escreveu uma ode à cebola imaginando suas camadas de cristais e coloridas então notei que não estava pirando e segui com as escolhas.
As miçangas são contas que podem ser de osso, barro ou de cristais e até vidro ou plástico, mas em comum elas são coloridas e então lembrei das miçangas de Mia Couto. Ele fala que o fio de um colar vistoso não é visto, mas as miçangas são não somente vistas, mas também admiradas. Comprei um tanto e fiz um colar de várias cores, aleatórias ia montando a medida que elas vinham a mim. Enquanto tecia o colar viajei imaginando cada uma sendo uma história de vida, uma passagem como as do Mia, de cores menos intensas são os dias nublados, as perdas, as perturbações da vida, e as coloridas, as mais vibrantes são os dias felizes, as conquistas, as alegrias que tornam a vida boa.
Imaginei o fio quase invisível do fino nylon que as seguravam como se fosse o fio do destino, aquele que as Moiras cortam quando bem entendem e desafiei uma vida longa. Continuei a fiar as miçangas de modo que o colar ficou longo e agora dou voltas com ele no pescoço. E nas voltas que o mundo dá, fiquei maravilhada com as continhas de vidro como o Neruda com sua cebola, fiei meu colar imaginando as cores e seus contos como cada capítulo da vida, e o fio invisível que as Moiras não podem cortar. É o meu colar, é a minha história, são meus contos e para garantir que não se solte amarrei com esmero e queimei as pontas para que unidas pelo fogo jamais se desmonte.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Fome

Adélia Prado tem um poema que diz: "Não quero faca, nem queijo. Quero a fome". Ela tem um capacidade incrível de sintetizar as coisas. Não basta ter a oportunidade nem os recursos, mas é preciso ter a vontade. Sem vontade de fazer algo nada será feito. Então pensei no reverso. A fome mata se não for saciada então não se deve alimentar algo que não nos agrada. Quando se tem pensamentos desagradáveis é melhor não alimentá-lo assim ele morrerá.
Dizem que temos dois lobos dentro de nós e eles brigam por comida, aquele que melhor alimentar mais forte ficará, então é bom escolher o que a gente alimenta. Seja o lobo interno, seja os pensamentos inferiores, seja pessoas que trazem noticias e conversas desagradáveis, não alimente o que não te faz bem.
E nas voltas que o mundo dá quero a faca e  o queijo como a Adélia, mas também quero a vontade, pois um não tem serventia sem o outro. Quero dos dias de primavera com floradas, quero as tempestades de verão, a preguiça de um fim de tarde a beira mar, a vontade de viver mais e aproveitar cada oportunidade que a vida possa me oferecer, aliás eu quero tudo e alimentar apenas o lobo bom.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Retrato

Um retrato é a representação de uma imagem, seja de uma pessoa, animal ou paisagem. E pode ser apresentado como pintura, fotografia ou desenho. Os retratos são importantes fontes de informações e também muitas vezes considerados documentos importantes por retratarem fatos em épocas específicas, retratos contam histórias. A Frida pintava a si mesma porque era o que ela mais via e melhor conhecia e pintou autorretratos. Van Gogh também pintou além de paisagens, a si mesmo. A Cecília Meireles tem um poema que ela se pergunta onde ficou o rosto e a juventude de antes ao se olhar no espelho que reflete a sua imagem de mulher madura.
Antes as fotografias eram mais limitadas, eram tiradas em situações específicas e guardadas com esmero, as vezes emolduradas ou colocadas em álbuns de fotografias. Hoje centenas de fotografias são tiradas diariamente por uma pessoa com um celular mão, depois deletadas, algumas guardadas digitalmente. A fotografia ficou banalizada, dizem algumas pessoas, muitas lojas de revelação e impressão de fotos já não existem mais. Muitos efeitos são adicionados digitalmente nas fotos de hoje e até efeitos especiais mudam a face das pessoas. 
Esses dias tirei uma tarde para escolher fotografias para "revelar" ou imprimir, colhi as mais que considerei mais importantes para um álbum, as mais felizes para decorar uma caixa, asa mais bonitas para fazer um quadro de colagens. Lembrei das fotografias que não foram tiradas e existem apenas na memória dos que viveram aqueles momentos, algumas são compartilhadas como o dia que o quarto de Pedro repleto de arte dele com origamis de flocos de gelo que nós não fotografamos, mas nós dois lembramos cada detalhe. Queria ter registrado, mas aí me dei conta que os momentos mais felizes não foram fotografados por que a gente estava ocupado vivendo.
As fotografias impressas ainda são consideradas mais seguras por mim, isso porque elas não se apagam, não somem na "nuvem" ou desaparece em um "pendrive", mas todas elas correm o risco de desaparecerem dos mecanismos digitais que as guardam, e até podem sumir das memórias orgânicas humanas se a demência chegar.
O fato é que uma das maiores invenções humanas é a fotografia, retratar fatos, a si mesmo, as coisas e pessoas que se acreditam ser interessantes é um ato de amor. E nas voltas que o mundo dá, as fotografias são recortes de histórias vividas e elas sempre têm uma coisa importante para ser revelada, contada, como uma carta, um poema ou um livro. Eu também considero as letras como "pixel" de fotos, cada um quadradinho tem uma informação que compõem a imagem, já as letras cada uma tem informações que compõem a escrita, em todos os casos existe a contação de uma história.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Cheganças

A chegada foi num domingo, como a música de Alceu Valença. O céu escandalosamente azul, contrastando com o ipê amarelo da rua do lado já em sua extravagante beleza floral, fez o astro rei chegar um pouco mais cedo. Ele deu a graça alegrando a aviflora, tinha abelha fazendo zum, zum, tinha bem-te-vi cantando em seus galhos e até o João de barro fez uma casinha lá, e não vai demorar para as cigarras começarem sua cantoria. O chão já tem flores formando um tapete e o vento acarinhando as flores amarelas e os cabelos pretos da moça que espera o ônibus. É um vento breve, suave e menos gelado. É quase um carinho, um cafuné.
As árvores parecem ser vaidosas nesse tempo, se amostram, se mostram definitivamente belas, as acácias e flamboyant  começaram a floração. É nesse tempo que a gente se enche de Esperança em dias melhores. É quase impossível não ser feliz na primavera que já tá ali batendo na porta. Os dias de setembro são assim, um contraste do amarelo e azul quase uma tela de Van Gogh. Eu poderia definir como uma carta de amor, aquela que a gente espera ansiosamente sua chegada e quando abre, o fôlego acaba de tanta alegria.
E nas voltas que o mundo dá, um dia vou virar um ipê amarelo, morar perto do rio, servir de abrigo para João de barro e companhia, ser o palco para o canto das cigarras no final do dia, e ficar escandalosamente bela durante alguns dias do ano. Feliz primavera povo lindo, ela tá chegando já.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Chegada esperada

Os dias estão ficando mais claros, o sol se mostra menos tímido e já chega um pouco mais cedo, o céu incontestavelmente azul, oferece o contraste perfeito para a florada dos ipês amarelos que estão por todos os cantos. E nas voltas que  o mundo dá, é final de inverno que não vai deixar saudades, tá na hora de esperançar, a primavera está por vir eu já vejo seus sinais.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Renascer

No Japão do século XV surgiu uma técnica de colagem de cacos chamado de Kintsugi que consiste em colar os cacos de um peça de cerâmica com uma laca japonesa feita com ouro. Assim, a nova peça feita da velha ganha nova roupagem e sua utilidade é resgatada. Nas igrejas medievais o uso de vitrais com vidros de cores diferentes formando figuras foi utilizado a partir do século XI. Tem gente que é como vitral, feito de pedaços coloridos, tem gente que é feito uma peça de Kintsugi que aceita suas imperfeições e as realçam, e tem gente que é pó de vidro que vira miçanga colorida.
As vezes a vida age com uma força insuportavelmente forte e não só nos quebra, mas faz um pó moído como se um rolo compressor passasse por cima. Uma vez Cal Sagan disse que "somos poeira de estrelas". Acho lindo isso, mas é muita dor pra pouca poesia. E quando se está só o pó, o vento é outro problema, e não tem a fênix de Alvo Dumbledore para deixar suas lágrimas criarem um novo ser das cinzas ou do pó. O jeito é ser como o exterminador do futuro, se unir grão por grão como se fosse um mercúrio líquido e formar uma miçanga, depois outra, cada uma de uma cor diferente.
E nas voltas que o mundo dá, não tem poeira de estrelas, nem técnicas japonesa ou vitral colorido. É preciso juntar a poeira, fazer suas próprias miçangas coloridas, enfiar no fio da esperança e  criar um colar novo, com novas histórias e enfeitar a vida para voltar a sorrir.

sábado, 27 de julho de 2024

Materna

Sua casa era simples, tinha um fogão a lenha, um quintal cheio de temperos e ervas de chá e uma lata de biscoito de canela sempre abastecida pra agradar os netos. O teto era de telha vermelha e as vezes um surgia no chão círculos de luz do solar. O cheiro era sempre bom, café torrado em casa com rapadura e pilado no pilão, almoço feito na panela de barro comprada na feira, era o melhor feijão do mundo. Na sala tinha uma cadeira de madeira e palhinha que agora habita minha sala de estar. Era uma casa acolhedora sempre tinha uma toalha colorida na mesa de jantar e flores colhidas no quintal, geralmente margaridas.
As tardes sentava em sua cadeira pra contar histórias da juventude, nem sempre lembrava do que tinha feito pela manhã, mas lembrava com detalhes de sua meninice. Dizia sempre pra gente guardar memórias afetivas, pois eram as únicas coisas que seriam nossas pra sempre. Assim era a casa de Joana da Costa minha avó que vive em mim como todas as avós vivem na gente pra todo o sempre.
Essa semana foi o comemorado o dia delas, mas não precisamos de dia festivo para lembrar das histórias, dos cheiros e sabores que elas proporcionaram em nossas infâncias. E nas voltas que o mundo dá, sou grata por ter tido a felicidade imensurável de ter convivido com mulher tão sábia cujos ensinamentos ainda permanecem vivos e carregar um dos nomes que ela escolheu pra mim. Obrigada avó.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Sem explicação


Esses dias recebi uma fotografia antiga, nela estava a família Costa reunida, grande, diversificada, rostos sorridentes, mesa farta essas coisas. Deu saudades. O Bernardo Soares (Pessoa), disse que "tudo que é sentimento é inexplicável". Quando a gente sente algo, não tem como mensurar para o entendimento do outro. Por isso, não há explicação. Me peguei pensando esses dias nessa frase tão forte quando vi a imagem de tempos passados. Lembrei dos cheiros das vozes da memórias afetivas dos pratos e foi como uma viagem no tempo. Esse tipo de sentimento é difícil de explicar.
Naquela imagem há pessoas que já partiram para outros mundos e deixaram lembranças, os jovens já não são tão jovens e as crianças? essas já são os jovens de hoje. A presença da ausência de tantos é uma constância sem fim e assim a gente vai criando outras memórias em outros lugares com outras vidas e que um dia vai ser só uma memória numa fotografia como essa. A parte legal de tudo isso? É saber que o afeto, as delicadezas dessas horas de descuido são marcadas com felicidade como algodão doce. E a vida é isso também momentos efêmeros que se tornam eternos nos laços afetivos criados vida a fora.
E nas voltas que o mundo dá, a gente entende que a vida não se economiza pra amanhã, que o abraço de agora pode ser o último. É preciso saber aproveitar cada pedacinho dessa deliciosa vida e colher o fruto do agora, hoje, mas sem esquecer de plantar novas árvores para colher novos frutos.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Retalhos de afeto

Minha mãe era costureira, e com os retalhos que sobravam das costuras ela juntava e fazia uma combinação de cores de retalhos, num maravilhoso quebra cabeças e transformava em colchas de cama. Certo dia, uma senhorinha da minha rua que sempre vinha visitar meus meninos pequenos viu uma dessas colchas na cama do Pedro e pediu pra eu encomendar uma para seu neto que ia nascer. Minha mãe fez, ela presenteou o neto Luiz. Dona Luiza já desencarnou, recentemente a sua casa foi demolida e ninguém fala mais nela.
Esses dias na sala de aula, o Luiz me perguntou se eu conheci a dona Luzia, mãe de Daniela que morava na minha rua. Respondi que sim, ele perguntou se podia me abraçar e me contou a história da sua colcha de retalhos presenteada por sua amada avó, a colcha que tem uma memória afetiva muito importante na vida dele e que foi o melhor presente. Sua avó contou que quem havia costurado era a mãe da vizinha dela (no caso eu) que agora era sua professora. 
No caminho para casa fiquei a pensar também na minha única boneca de pano feita com retalhos por tia Aiá, como ela foi importante na minha infância! E embora não tenha fotografias, tenho suas feições guardadas na minha canstra de lembranças que as vezes me tira risos no meio de pensamentos distantes. Tenho ainda uma blusa de retalhos de ceda que mãe costurou, e quando faço arrumação não tenho coragem de desafazer dela, a combinação de cores e estampas é tão perfeita, e assim, ela vai ficando. Tenho lindos retalhos de lembranças de quando a roda da máquina virava direção de carro, de quantas vezes furei o dedo tentando costurar, ou mesmo colocando linha na agulha, das tardes costurando panos de pratos juntas e conversando sobre qualquer coisa.
Fiquei pensando então nas palavras do Gandhi quando afirmou: " Você nunca sabe que resultados virão da sua ação, mas se você não fizer nada, não existirão resultados".  Minha mãe costurou com esmero uma colcha que sabia que seria presente de uma avó para um neto e a fez com carinho, o resultado de suas ações que ocorreram a quase duas décadas, agora chega até mim como um abraço cheio de histórias afetivas de uma avó com um neto. E nas voltas que o mundo dá, os retalhos de costura bem arrumado juntado pedacinho por pedacinho se tornaram os retalhos de afeto que nunca serão levadas pelo tempo. E as ações de mãe chegaram a mim em forma de abraço de gratidão. E a pergunta que fica é: suas ações sempre voltam pra você ou pra alguém próximo, isso te assusta ou te conforta?

domingo, 23 de junho de 2024

Memórias

Segundo Rubem Alves. "As memórias só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertencem", por terem vida própria elas voltam sempre para nos visitar quando o tempo delas surge. Pois bem, agora estamos no mês mais gostoso, feliz e festeiro do ano. Elas ficam por aqui e ali contando no pé do ouvido as lembranças de tempos passados.
Era um dia frio de junho, as tarefas já estavam todas divididas, família grande, enquanto um comprava as mãos de milho antes do café da manhã na feira de rua, os demais se preparavam e começava a correria, o que comprava o milho tratava de tirar as palhas e separar as mais bonitas pra ir ao fogo baixo com água, os demais se desdobravam em depilar os milhos e cortá-los para passar no moinho e aquele grosso caldo era dividido uma parte para pamonha, outra parte para a canjica que a gente disputava para raspar o tacho. O perfume circulava na casa toda. Os fornos ocupados com biscoitos de goma e maisena, além dos bolos de diversos sabores.
Lá fora, a fogueira era montada para ser acessa exatamente as seis horas da tarde. A casa enfeitada com toalha de mesa e almofadas de Chita coloridas e a arrumação em andamento, a disputa pelo banheiro, todo mundo queria ficar bonito para os festejos, o forró tocando na vitrola antiga com o rei do baião e muitas histórias sendo contadas dos tempos de vó.
Depois do jantar com queijo e milho assados na brasa, tinha a missa. Depois a casa do tio Paizinho era rumo certo. Casa simples, uns tamboretes para sentar de quando em vez, as chitas enfeitando a janela, uma vitrola ali com o último do disco do Gonzaga e a fogueira lá fora, era um tal de ser compadre e comadre que São João mandou, era um tal de trocar de par pra nova música, e pular fogueira. As buchas de aço eram usadas como fogos de artifício, amarradas no barbante era só acender na fogueira e girar sobre a cabeça fazendo uma cascata de fogo. Ninguém ficava parado.
E nas voltas que o mundo dá, é nessas horas que as memórias resolvem passear pelo céu feito balão, colorir as paredes da memória com quadros de risos felizes. Cheiro de pipoca, fumaça e coração aquecido de abraços e comidas regadas de afeto. Desejo que todos tenham memórias que brincam, que sejam livres para vir quando quiserem e faça o sorriso escorrer pela boca como doce de jaca e caju caramelados. Memórias cheirosas e quentes como canjica no prato soltando fumaça, e gente feliz. Viva São João.


sábado, 15 de junho de 2024

Abusos

Demeter ou Ceres, assim como Zeus era filha de Cronos e Reia. Portanto, irmã de Zeus com quem teve uma filha, a Perséfone que assim como a mãe era responsável pela colheita e fertilidade do solo. Seu tio Hades, deus do mundo inferior se apaixona por ela e num acordo com Demeter que para não perder sua filha e o mundo ficar em descontrole, concorda em dividir o ano em duas partes, metade sua filha fica com Hades e a outra metade com a Demeter. A partir desse mito, os gregos e romanos explicaram a divisão do ano em quatro estações. Durante o outono e inverno enquanto Perséfone está no submundo, a terra se mostra fria, cinza e com tempestades e trovões. Durante o tempo que ela passa com sua mãe Demeter, o clima muda, a terra fica festiva, cheias de frutos, calor dias longos e ensolarados é a estação de primavera seguida do verão.
Em Roma - Itália tem uma escultura que causou-me um espanto tremendo, seja pela perfeição do escultor Gian Lorenzo Bernini, seja pela expressão de dor e desespero dela, assim como seu corpo marcado pelos dedos de seu raptor, a presença de Cérbero, o cão de três cabeças com três personalidades diferentes. A escultura tem pouco mais de dois metros de altura, é fotografada diariamente por centenas de milhares de pessoas que olham a perfeição dos detalhes esculpidos em mármore branco, mas o impacto tão maior que os detalhes da arte do artista, são as expressões de dor, os olhos desesperados, a lágrima em seu rosto, o corpo apertado pelos dedos do raptor. E nesse mito representado na escultura indescritivelmente bela e imortal, as pessoas veem a poesia que eu não consegui enxergar.

Foto: O rapto de Perséfone 
Fonte: acervo pessoal - 2024

Não há como ficar indiferente, aliás não há como não ser impactada por essa perfeição imortalizada pelas mãos humanas, os detalhes da anatomia das mães, a perfeição do corpo feminino e a pressão dos dedos sobre a carne jovem branca são alguns dos detalhes que eu ficaria por horas a observar sem descanso, mas tem gente demais, é melhor caminhar.

Foto: O rapto de Perséfone 
Fonte: acervo pessoal - 2024.

Depois de ver essa indescritível expressão artística e os mitos gregos que ainda hoje vivem no imaginário de todo o mundo, nas histórias da Disney e em diversos filmes. Também fiquei a lembrar de outras histórias como me foi contada dia desses de uma amiga que assim afirmou: "minha bisavó foi pega no mato". Quando os exploradores europeus aqui chegaram, caçavam mulheres indígenas no floresta, tomavam para si e as tinhas possuíam como bem entendiam. Nos dias de hoje, meninas são caçadas nas ruas e precisam estar atentas, não podem andar sozinhas, não podem se comportar de maneira que atraia o sexo oposto. Mulheres não se sentem seguras em qualquer lugar.
E nas voltas que o mundo dá, são muitas as Perséfones que diariamente sofrem com perseguições dos homens. As mulheres são diariamente silenciadas, perseguidas e usadas, suas mentes colonizadas e suas ações, desejos e aspirações amordaçadas. Precisamos mudar esse pensamento romântico de caça as mulheres.


domingo, 9 de junho de 2024

Auscutar

Pessoa certa vez escreveu: " as vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido". Ah, Pessoa deixa eu te contar (senta que lá vem história). Minha avó gostava de ouvir passar o vento, era uma mulher da natureza e entendia quando o vento mudava, e mesmo morando na área urbana lembrava: "essa época é boa pra plantar". Contava histórias de seu tempo que parecia saído de um livro e eu as ouvia atentamente. O Rubem Alves disse que a gente tá acostumado a falar e esquecemos de ouvir, deveria ter cursos de escutatória ao invés de oratória.
Esses dias fui ao médico e na sala de espera uma senhora toda cheia de dores comentava as mudanças do clima e o que causava em sua saúde. Embora eu sinta essas coisas de dores quando o tempo muda e minhas juntas se juntam contra mim, eu a  ouvi em uma escuta ativa, sem ruídos auscutando suas lamentações parecia sentir necessidade de falar. E depois da consulta era minha vez, ela sorriu e agradeceu que eu a ouvi sem julgar. Fiz igual aos "Pinguins de Madagascar" (sorria e acene).
Tem alguns anos que descobri uma doença autoimune que me causam dores quando o tempo muda. E assim como vó eu sinto o vento mudar e sei que para mim, não é "tempo de plantar", mas de me resguardar. Sentir dores as vezes é normal, mas sempre não tá certo e a gente busca meios de aliviar a gastura do dia, seja escrevendo, falando ou só silenciando um tempo. Tem gente que se refugia em seu casulo pra quando a primavera chegar renascer em um corpo novo feito borboletas, tem gente que precisa fazer uso da fala.
E nas voltas que o mundo dá, não basta apenas ouvir o passar do vento. É preciso auscutar, sem ruídos, sem interferência numa escuta ativa, pois o vento pode contar coisas, mas pessoas precisam ser escutadas e não apenas ouvidas. E suas histórias carregam tantos ensinamentos! Queria te contar como as minhas dores físicas são apaziguadas talvez ajudasse, mas preferi ouvir, sorrir e acenar, pois era o que ela necessitava naquele momento. E só pra lembrar Pessoa, o vento aqui é bem geladinho talvez você gostasse de ouvi-lo, mas eu particularmente prefiro os ventos da meia estação. Os do inverno não são muito gentis.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Casa de mãe

Chegando em casa depois de um dia cheio, coloquei uma massa no fogo e pedi para um dos meninos pela os tomates para o molho. Nesse momento revi uma cena corriqueira em cozinha de mãe quando minha irmã mais velha pelava tomates para o molho da massa. A cena se repetiu. O cheiro do manjericão colhido no quintal fresco e saudável para servir o jantar me remeteu a memórias inesquecíveis que surgem em pequenas horinhas de descuido e meu coração se enche de alegrias saborosas.
A cozinha sempre foi um laboratório de sabores e aprendizagens, é quase uma alquimia, os hábitos alimentares que me identificam e constroem minha identidade vieram de muitas mulheres que vieram antes de mim. As receitas da avó que passaram para a mãe e chegaram até mim, mas não somente as comidas ancestrais que fazem parte de minha vivência.
As mulheres que viveram antes de mim foram cruciais para a vida que tenho na atualidade e a minha vivência será uma contribuição para as que vierem depois de mim. Os direitos que temos hoje como trabalhar fora, ter sua própria renda, decidir quando, como e com quem ter filhos e se quer ter, assim como o direito de voto e tantos outros que usufruo hoje só foram possíveis pelas lutas delas.
As minhas ancestrais agradeço pelas conquistas e lutas travadas as mulheres que virão depois de mim, tenho a responsabilidade de manter a luta para garantia de direitos que ainda não foram conquistados. E da alquimia da cozinha os sabores ancestrais que me foram transmitidos tenho a obrigação e o dever de manter intactos para as futuras gerações.
O afeto que foi herdado, as heranças culturais que são presentes pra minha existência devem ser preservadas para as virão depois de nós. A ancestralidade se faz presente em meu cotidiano com as histórias contadas de geração após geração, da identidade cultural, das danças, das receitas que enchem a cozinha de sabores e cheiros, das memórias afetivas das festividades familiares, assim com os traços biológicos que me foram dados por herança genética.
E todas as mulheres que viveram antes de mim, habitam meu ser e se mostram presentes em todas as esferas de atuação da vida diária. O meu lugar no mundo, as minhas relações afetivas estão repletas de conhecimento, identidade e representatividade de todas as mulheres que vieram antes.
E nas voltas que o mundo dá, educar meninos para o respeito e afeto com as mulheres também é uma responsabilidade nossa de mãe. Em casa de mãe tem afeto, tem respeito e comida boa, casa de mãe é ninho, casa de mãe é colo, está sempre aberta pra quando precisar com comida e risada, com cheiros e uma generosa pitada de ancestralidade. Por que não há lugar melhor no mundo que casa de mãe.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Para meu irmão mais velho

Esses dias tenho pensando em você que certa vez chegou de uma de suas viagens pela Amazônia trazendo consigo um estranho inseto em uma garrafa com álcool, dizia ser a serpente voadora. Contava que era tão perigoso que seu veneno era capaz de matar até árvores centenárias. Tinha a história de um peixe cor de rosa que se chamava boto, e sua lenda de se transformar em moço bonito para namorar as meninas novas. Tinha história da Vitória régia e as fotografias que ele trazia das flores enormes nos espelhos das águas dos rios. Eu ficava ali, olhando, escutando as histórias "folclorizadas" que ele trazia juntamente com as "provas", não poderia ser mentira, jamais.
De suas andanças, trouxe muita coisa, conhecimento, histórias, sua caixa de memórias deveria ser muito complexa e repleta de informações. Eu gostava disso. Numa dessas andanças ele presenteou nossa mãe com uma tigela que disse ele ter sido feito a partir de uma pedaço de madeira, essa madeira ia sendo cavada até formar a tigela e depois os indígenas decoravam com recortes na peça, uma arte conhecida como artesanato da ilha de Marajó.
Esses dias, alguém me perguntou de onde veio a tigela de madeira cheirosa que tenho sobre a mesa, respondi que foi herança de mãe, presente de irmão. E viajei nas lembranças daquela sala cheia de gente ouvindo as histórias que muitos não acreditavam, mas gostavam de ouvir. Depois fui procurar ver se existe mesmo essa serpente que voa e me deparei com ela, igual a que habita as minhas memórias. No norte do Brasil aonde ele vive se conta esses mitos mesmo, mas não há registros de mortes por causa dele.
Foto: Jequitiranabóia
Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia/cobra-que-voa-conheca-a-jequitiranaboia

E nas voltas que o mundo dá, a jeuitiranabóia, nem é tão feia, nem é venenosa, mas ele também não mentiu contou pra gente o que contaram pra ele. A minha tigela de Marajó é de verdade uma tigela cavada no pedaço de madeira, até hoje ainda é cheirosa. É um artesanato lindo, e todas as histórias que ele contava tinha um fundo real, uma verdade que as vezes aumentada, mas sempre uma verdade. E agradeço tanto por tido a oportunidade de ter compartilhado o mesmo tempo e lugar com esse aventureiro. E por falar em tempo, tá chegando o seu aniversário mas já não dividimos o mesmo planeta, estamos em outras estradas. Foi bom estar com você Selmo.


sábado, 27 de janeiro de 2024

Corpos precarizados

Manoel de Barros certa vez escreveu: "uso as palavras para compor meus silêncios". Essa pequena frase costuma causar tempestades de pensamentos. Esses dias vi que uma novela antiga iria ao ar com nova roupagem, e lembrei de quando adolescente eu vi a primeira versão. Se passaram trinta anos e ela agora vem com a mesma história, e eu me deparo com diálogos profundos e os mais variados tipos de precarização dos corpos humanos, especialmente das mulheres.
Naqueles tempos da primeira novela, a  gente achava charmoso um rapaz tomar um beijo sem autorização da moça, como Zé fez com Santinha. O relato de Morena contando como chegou, e porquê chegou na casa de perdição da Jacutinga e a explicação da dona do estabelecimento para empreender na casa de "acolhimento" e prostituição humanizada. Os maus tratos do pai para proteger a filha de ser abusada pelo patrão. E a vida masculina, fazendo o que bem lhes convém com os corpos desde seu nascimento. Ditando regras, colonizando o pensamento feminino como forma de castração psicológica. A ponto de criar a competição entre mulheres para que elas não possam se unirem, pois se o fizer se tornam uma ameaça pra a masculinidade frágil.
Essas práticas corporais são massacradas por ações rotineiras e exageradas com o controle excessivo, e silêncio sobre a sexualidade. E na busca pela libertação corpórea é no corpo que se imprimi as marcas sociais. Também na TV aberta  por esses dias, um homem com seu abdome globuloso, corpo tatuado, cabelo pintado, unhas com carência de cuidados. Se encontrou no lugar privilegiado de fala de criticar  o corpo esteticamente dentro dos padrões considerados belo de uma mulher, branca, cisgênero e heterossexual em redes sociais.
Fico me perguntando como no século XXI conseguimos chegar a um atraso tão grande? Se passaram três décadas da novela passada para os dias atuais, e as cenas e diálogos perfeitos do autor que tem um trabalho brilhante, ainda são tão atuais? Por que os corpos femininos ainda são tão precarizados?
E nas voltas que o mundo dá, hoje tanto quanto ou mais que ontem, precisamos falar de amor. Precisamos e esperança do verbo esperançar de Paulo Freire. Uma pedagogia emancipatória para a não precarização de nenhum corpo, a valorização das pessoas com dignidade humana e a não violência de qualquer tipo para que possamos Renascer.