quinta-feira, 1 de maio de 2025

Lugar


Um lugar pode ser definido como sendo a porção do espaço geográfico dotada de significados particulares e relações humanas. Houve um tempo em que igrejas eram lugares feitos para o pensamento, a calmaria, a contemplação. Templos com vitrais, colunas, com cheiro de incenso, instrumento musical característico para a música que eleva o espírito. As feiras livres era um lugar de muitas cores, sabores e cheiros. As ruas dos centros das cidades cheias de gente, uma rua pulsante, viva. As casas tinham curvas, cores vibrantes, no seu interior normalmente um móvel ou outro de herança de família, plantas naturais, móveis novos combinado perfeitamente com os antigos, nas paredes quadros de artistas regionais ou até mesmo da família.

Com a globalização e as novas tecnologias digitais as coisas foram ficando genéricas, o espaço e o lugar ficaram sem significados. Hoje as igrejas são templos de cadeiras de plástico, banda de instrumentos barulhentos, sem contemplação, sem iluminação difusa que promove a introspecção, gritos e danças são ouvidos até do lado de fora. As feiras livres agora apresentam seus produtos previamente embalados, já não tem aquele pastel de feira com caldo de cana, e parte desse comércio foi para os mercados que agora são hipermercados, os mercadinhos de bairro praticamente sumiram.

As casas dão lugares a prédios cada vez mais altos, cheios de vidro que confundem os passarinhos que batem neles e caem mortos, se confundem com o reflexo do sol, e muitas vezes até as gramas dos condomínios são de plástico. Quando tem casa ainda são reformadas com linhas retas e padronizadas, não existe mais originalidade é tudo genérico. No interior tudo que é velho é feio e as casas se enchem de informações nas paredes no chão e tudo é tão igual.

A falta de tempo para cozinhar faz as pessoas recorrerem aos pedidos pelos aplicativos, o gostinho de comida de casa, de cozinha quente e cheirosa hoje é raridade. Procurando por essas normalidades de cada lugar a gente viaja. Nos hotéis em qualquer lugar do mundo existe um padrão, o regionalismo tá aonde gente? Como assim ira a Porto Seguro e não encontrar nos hotéis comidas regionais?

Aqueles encontros no final da tarde nas calçadas, que delícia! Essa nova geração não conhece, mas tem uma intimidade com as telas, até o café da esquina, ou boteco da rua do lado, agora para atrair clientes precisa ter um ambiente instagramável, ou seja, ambiente bonito que as pessoas possam tirar fotos e divulgar o local. O centro da cidade agora é quase desértico, as pessoas preferem os ambientes de shopping e o lugar comum vai ficando sem vida, a cidade não pulsa.  A terra dos biscoitos de "chimangos" e "avoadores", agora introduziram o prefixo, "gourmet" em tudo para valorizar o produto. E nas voltas que o mundo dá, a vida vai perdendo um pouco em cada mudança padronizada no mundo globalizado e vázio.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Caju

Na minha vida o caju tem lá seu lugar de autoridade, tem o poder de me levar a lugares que gosto de revisitar. Seu cheiro lembra férias, mar, amizades e aventuras. Quando menina tive a sorte de ter por perto cajueiros pra coletar os frutos. Certa vez, ao descer de um cajueiro no sitio cai sobre um prego, não sei se o medo era maior de contar pra mãe ou a dor do ferimento. Em casa, o buraco que ia de um lado a outro do pé foi preenchido com uma mistura de confrei macerado com mel e fiquei uma semana sem colocar o pé no chão.
Nas manhãs de sábado um senhor com um saco nas costas, uma sexta de vime e um andar lento pelo peso dos anos, trazia um sorriso no rosto e dezenas de memórias no rosto enrugado pelo tempo costumava e ir a feira de rua e era cercado pela meninada que sabia que receberia a fruta, ao passa na minha casa sempre deixava alguns como agrado. Os cajus de seu Chagas eram diferentes, além de serem grandes e amarelos, imensamente doces e escandalosamente belos, com a pele fina sem rachaduras ou ferimentos eram consumidos in natura, nada de sucos ou doces, eles tinham cheiro de amor, afeto de amizade. Aprende ao longo do tempo que os mais doces, eram os que estavam bicados por passarinhos ou os rachados, sempre achei que as rachaduras era a doçura que não cabia mais nele e rachava a sua pele.
Em casa de mãe o suco da fruta era sempre usado, em casa de tia as frutas viravam doces em calda (nunca consegui fazer igual), era iguaria para se presentear também. As castanhas eram guardadas e no final da safra a gente colocava em uma lata com furos e assava na fogueira de gravetos do próprio cajueiro e depois de ficarem pretas e exalarem uma perfumada fumaça, a gente quebrava e tirava a pele. Essas castanhas depois viravam uma fuba que a gente comia com açúcar e farinha de mandioca, ou viravam picolés com uma mistura de castanha, açúcar e leite de coco feito em casa. Não há nada que expresse mais o sabor de férias que o caju.
Quando vim morar longe não conhecia ainda a nova casa, mas me deparei com uma grata surpresa, um quintal com goiabeiras, laranjeiras, abacateiro e lá no fundo com sua copa dançando com as folhas da mangueira da vizinha um majestoso cajueiro. E se tornou um novo amor, hoje já não frutifica tanto como antes, mas durante muitos anos foi minha fonte de felicidades de férias e alegrias de quintal. E se tornou um provedor de novas memórias afetivas também para as minhas crias.
Meu cajueiro é casa de passarinhos, eu diria que um condomínio, um refúgio no meio da cidade que cresce com tantos prédios, mas também é morada de outros animais, oferecendo sombras em dias quentes com suas folhas dançando em dias de tempestades, seu caule já deu casca pra remédios cicatrizantes. E por mais que os anos se passem, mesmo com sua copa podada devido as construções da vizinhança, ele continua lindo, forte e um lembrete de como a vida pode ser boa. É casa de Suzana e Estrela, já foi mastro de navios, balão, montanha e tatas outras coisas nas brincadeiras de quintal. E até tem nome se chama felicidade. E todos os dias agradeço a quem o plantou mesmo sem saber quem o foi, mas acredito que é um ser de luz, pois plantou uma árvore sem saber se usaria seus frutos ou se sentaria sua sombra é um entendedor do sentido da palavra "vida".