domingo, 23 de junho de 2024

Memórias

Segundo Rubem Alves. "As memórias só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertencem", por terem vida própria elas voltam sempre para nos visitar quando o tempo delas surge. Pois bem, agora estamos no mês mais gostoso, feliz e festeiro do ano. Elas ficam por aqui e ali contando no pé do ouvido as lembranças de tempos passados.
Era um dia frio de junho, as tarefas já estavam todas divididas, família grande, enquanto um comprava as mãos de milho antes do café da manhã na feira de rua, os demais se preparavam e começava a correria, o que comprava o milho tratava de tirar as palhas e separar as mais bonitas pra ir ao fogo baixo com água, os demais se desdobravam em depilar os milhos e cortá-los para passar no moinho e aquele grosso caldo era dividido uma parte para pamonha, outra parte para a canjica que a gente disputava para raspar o tacho. O perfume circulava na casa toda. Os fornos ocupados com biscoitos de goma e maisena, além dos bolos de diversos sabores.
Lá fora, a fogueira era montada para ser acessa exatamente as seis horas da tarde. A casa enfeitada com toalha de mesa e almofadas de Chita coloridas e a arrumação em andamento, a disputa pelo banheiro, todo mundo queria ficar bonito para os festejos, o forró tocando na vitrola antiga com o rei do baião e muitas histórias sendo contadas dos tempos de vó.
Depois do jantar com queijo e milho assados na brasa, tinha a missa. Depois a casa do tio Paizinho era rumo certo. Casa simples, uns tamboretes para sentar de quando em vez, as chitas enfeitando a janela, uma vitrola ali com o último do disco do Gonzaga e a fogueira lá fora, era um tal de ser compadre e comadre que São João mandou, era um tal de trocar de par pra nova música, e pular fogueira. As buchas de aço eram usadas como fogos de artifício, amarradas no barbante era só acender na fogueira e girar sobre a cabeça fazendo uma cascata de fogo. Ninguém ficava parado.
E nas voltas que o mundo dá, é nessas horas que as memórias resolvem passear pelo céu feito balão, colorir as paredes da memória com quadros de risos felizes. Cheiro de pipoca, fumaça e coração aquecido de abraços e comidas regadas de afeto. Desejo que todos tenham memórias que brincam, que sejam livres para vir quando quiserem e faça o sorriso escorrer pela boca como doce de jaca e caju caramelados. Memórias cheirosas e quentes como canjica no prato soltando fumaça, e gente feliz. Viva São João.


sábado, 15 de junho de 2024

Abusos

Demeter ou Ceres, assim como Zeus era filha de Cronos e Reia. Portanto, irmã de Zeus com quem teve uma filha, a Perséfone que assim como a mãe era responsável pela colheita e fertilidade do solo. Seu tio Hades, deus do mundo inferior se apaixona por ela e num acordo com Demeter que para não perder sua filha e o mundo ficar em descontrole, concorda em dividir o ano em duas partes, metade sua filha fica com Hades e a outra metade com a Demeter. A partir desse mito, os gregos e romanos explicaram a divisão do ano em quatro estações. Durante o outono e inverno enquanto Perséfone está no submundo, a terra se mostra fria, cinza e com tempestades e trovões. Durante o tempo que ela passa com sua mãe Demeter, o clima muda, a terra fica festiva, cheias de frutos, calor dias longos e ensolarados é a estação de primavera seguida do verão.
Em Roma - Itália tem uma escultura que causou-me um espanto tremendo, seja pela perfeição do escultor Gian Lorenzo Bernini, seja pela expressão de dor e desespero dela, assim como seu corpo marcado pelos dedos de seu raptor, a presença de Cérbero, o cão de três cabeças com três personalidades diferentes. A escultura tem pouco mais de dois metros de altura, é fotografada diariamente por centenas de milhares de pessoas que olham a perfeição dos detalhes esculpidos em mármore branco, mas o impacto tão maior que os detalhes da arte do artista, são as expressões de dor, os olhos desesperados, a lágrima em seu rosto, o corpo apertado pelos dedos do raptor. E nesse mito representado na escultura indescritivelmente bela e imortal, as pessoas veem a poesia que eu não consegui enxergar.

Foto: O rapto de Perséfone 
Fonte: acervo pessoal - 2024

Não há como ficar indiferente, aliás não há como não ser impactada por essa perfeição imortalizada pelas mãos humanas, os detalhes da anatomia das mães, a perfeição do corpo feminino e a pressão dos dedos sobre a carne jovem branca são alguns dos detalhes que eu ficaria por horas a observar sem descanso, mas tem gente demais, é melhor caminhar.

Foto: O rapto de Perséfone 
Fonte: acervo pessoal - 2024.

Depois de ver essa indescritível expressão artística e os mitos gregos que ainda hoje vivem no imaginário de todo o mundo, nas histórias da Disney e em diversos filmes. Também fiquei a lembrar de outras histórias como me foi contada dia desses de uma amiga que assim afirmou: "minha bisavó foi pega no mato". Quando os exploradores europeus aqui chegaram, caçavam mulheres indígenas no floresta, tomavam para si e as tinhas possuíam como bem entendiam. Nos dias de hoje, meninas são caçadas nas ruas e precisam estar atentas, não podem andar sozinhas, não podem se comportar de maneira que atraia o sexo oposto. Mulheres não se sentem seguras em qualquer lugar.
E nas voltas que o mundo dá, são muitas as Perséfones que diariamente sofrem com perseguições dos homens. As mulheres são diariamente silenciadas, perseguidas e usadas, suas mentes colonizadas e suas ações, desejos e aspirações amordaçadas. Precisamos mudar esse pensamento romântico de caça as mulheres.


domingo, 9 de junho de 2024

Auscutar

Pessoa certa vez escreveu: " as vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido". Ah, Pessoa deixa eu te contar (senta que lá vem história). Minha avó gostava de ouvir passar o vento, era uma mulher da natureza e entendia quando o vento mudava, e mesmo morando na área urbana lembrava: "essa época é boa pra plantar". Contava histórias de seu tempo que parecia saído de um livro e eu as ouvia atentamente. O Rubem Alves disse que a gente tá acostumado a falar e esquecemos de ouvir, deveria ter cursos de escutatória ao invés de oratória.
Esses dias fui ao médico e na sala de espera uma senhora toda cheia de dores comentava as mudanças do clima e o que causava em sua saúde. Embora eu sinta essas coisas de dores quando o tempo muda e minhas juntas se juntam contra mim, eu a  ouvi em uma escuta ativa, sem ruídos auscutando suas lamentações parecia sentir necessidade de falar. E depois da consulta era minha vez, ela sorriu e agradeceu que eu a ouvi sem julgar. Fiz igual aos "Pinguins de Madagascar" (sorria e acene).
Tem alguns anos que descobri uma doença autoimune que me causam dores quando o tempo muda. E assim como vó eu sinto o vento mudar e sei que para mim, não é "tempo de plantar", mas de me resguardar. Sentir dores as vezes é normal, mas sempre não tá certo e a gente busca meios de aliviar a gastura do dia, seja escrevendo, falando ou só silenciando um tempo. Tem gente que se refugia em seu casulo pra quando a primavera chegar renascer em um corpo novo feito borboletas, tem gente que precisa fazer uso da fala.
E nas voltas que o mundo dá, não basta apenas ouvir o passar do vento. É preciso auscutar, sem ruídos, sem interferência numa escuta ativa, pois o vento pode contar coisas, mas pessoas precisam ser escutadas e não apenas ouvidas. E suas histórias carregam tantos ensinamentos! Queria te contar como as minhas dores físicas são apaziguadas talvez ajudasse, mas preferi ouvir, sorrir e acenar, pois era o que ela necessitava naquele momento. E só pra lembrar Pessoa, o vento aqui é bem geladinho talvez você gostasse de ouvi-lo, mas eu particularmente prefiro os ventos da meia estação. Os do inverno não são muito gentis.